27 set

Estranhos na névoa – Morena Borges

As aparências enganam e, às vezes, esse engano pode ser fatal.

Era meados de junho, inverno no Rio Grande do Sul. Alice saíra de Porto Alegre pouco antes do anoitecer, com destino a Gramado, na Serra. Ia passar o m de semana na casa da família do namorado, Gabriel. O rapaz, preocupado, insistira que seria melhor ela ir na manhã seguinte. Pegar a estrada àquela hora, ainda mais com aquele tempo, não era certo. Ela concordou com ele de imediato, mas pensou melhor depois. Isso a faria perder boa parte da manhã de sábado na estrada. Mudou de ideia. Já havia feito aquele trajeto sozinha uma vez no m da tarde, não haveria problemas. Ao chegar do trabalho, botou roupas mais quentes do que as que usava, casaco de lã, uma manta enrolada no pescoço e luvas. Pegou a mochila, jogou no banco de trás do carro e saiu do bairro Auxiliadora, onde morava. Agora o relógio marcava 17 e 30 e a meteorologia avisava sobre aumento do frio e possível geada em partes da serra, mas ela dirigia tranquila pela BR 116. Seguiria por aquela rodovia até Nova Petrópolis, de lá pegaria a ERS 235. Muito fácil.

Ligou o som e sintonizou uma rádio local de música gaúcha. Havia umas antigas que a faziam se lembrar de quando era criança e viajava com seu pai. Ele costumava cantar com aquela voz grossa e serena as canções tradicionais. Entre uma música e outra um noticiário falava sobre casos de assalto e ataques a mulheres dirigindo sozinhas num determinado trecho entre Nova Petrópolis e Gramado, por onde ela ia passar. Alice vira aquilo em jornais durante a semana. Mas não dera atenção. Aqueles noticiários só mostravam desgraça e ficar vendo isso atraía coisas ruins. Se as pessoas fossem se basear por aquelas reportagens, nem sairiam de casa ou sequer viveriam. Por isso, ela mudava de canal na hora dos noticiários. Isso nas raras vezes em que via TV aberta, nem tinha tempo e quando sentava-se diante da televisão, era para assistir alguma série na Netflix ou vídeos no Youtube.

Todas as vítimas foram encontradas degoladas na mata e seus carros abandonados a poucos metros. Os crimes têm características parecidas e o caso está sendo chamado pela polícia de O maníaco da ERS 235, dizia o repórter.

Sem alarde algum, Alice relanceou um olhar para as nuvens cinzentas que preenchiam o céu e a névoa que se adensava, formando sombras entre as árvores à margem da estrada.

— Maníaco da ERS 235, fala sério — pegou uma bala e pôs na boca. Voltou a atenção para o caminho vazio à sua frente. Rodando a mais de 100 por hora no seu HB20, sentia-se protegida. Dali a pouco chegaria a seu destino.

Uma vaneira contagiante aliviou o clima da notícia. Ela tamborilou os dedos no volante, balançando a cabeça ao som da música.

Os minutos foram passando, curvas sendo vencidas em meio à paisagem úmida de inverno.

Sem que Alice se desse conta, como acontece no crepúsculo, a pouca luz do dia foi se desvanecendo e a neblina se avolumando a cada avanço do carro pela rodovia deserta. Aliás, fazia uma boa meia hora que ela não cruzava com nenhum outro veículo. Aquilo parecia estranho. A estrada vazia de repente trouxe uma sensação de solidão incômoda. Até certo ponto do percurso, mantivera-se despreocupada. Agora, uma ansiedade excessiva a afligia. Mas ela ainda não queria admitir que zera a coisa errada ao confiar que a viagem seria tranquila. Ligou os faróis. Um chuvisco no brilhava na luz, disperso no ar. Ela dobrou numa curva sinuosa e, a cada metro percorrido, conseguia enxergar menos a estrada, progressivamente submersa na neblina. Por isso, só quando se aproximou bem, ela vislumbrou a figura recortada na brancura do nevoeiro. Uma pessoa na beira da estrada. Aparentemente pedindo carona. Alice diminuiu a velocidade, sondando, antes de decidir parar. Seus faróis iluminaram uma moça. Esperando ao lado de uma moto, ela estendia a mão.

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25 set

Meu último adeus – Lethícia Lobato

Aviso: O conto a seguir é totalmente fruto da minha imaginação. Nenhum fato aqui relatado deve ser usado para justificar casos que acontecem na vida real. Muito menos é meu objetivo desmerecer qualquer outra crença religiosa, pois todas devem ser respeitas. Qualquer semelhança não passa de mera coincidência.

*****

Uma vez, falaram para ela que a morte era o fim de tudo, que depois de dizer adeus a vida, nada mais sobrava, e foi nisso que ela acreditou durante toda sua existência. Ela viveu cada dia como se fosse o último, amou a esposa incondicionalmente, vivia para aquela que amava, se apegou tanto que o seu último pensamento, segundos antes de morrer, foi exclusivamente sua amada Amanda.

Ela não sabia onde estava. Olhou ao redor e viu que também outras pessoas pareciam tão perdidas quanto ela. Para falar a verdade, ela não sabia nem o seu próprio nome ou quem era e muito menos o que estava fazendo ali.

“Amanda…” — Essa era a única coisa que estava em sua mente, a única lembrança que parecia ocupar um lugar em sua memória.

— Você demorou mais do que eu imaginava.

Ela se assustou com o sussurro atrás de si; rapidamente se virou e olhou para quem era o dono daquela voz.

— Amanda… — Foi a única coisa que ela conseguiu dizer.

A criatura a sua frente deu um sorriso de deboche e balançou a cabeça negativamente. Ele já tinha visto aquilo milhares de vezes, praticamente era tudo do mesmo jeito.

“As pessoas não mudam…” — Ele pensou.
— Camila, esse era o seu nome em vida. Amanda era sua esposa. — E onde ela está?
— A essa hora, deve está chorando pela sua morte.

A mulher arregalou os olhos sem conseguir disfarçar sua surpresa. Mesmo não lembrando quem era, ainda sabia o que significava vida e morte. Definitivamente, não poderia ter tido outra reação que não fosse a de surpresa, com uma grande dose de medo por saber que estava morta.

— Como eu posso estar morta? Isso não é possível.

— Você morreu horas atrás. Se envolveu em um acidente com sua moto. – A criatura dizia sem parecer se abalar.

— Eu estava indo para casa encontrar Amanda…
— Ela foi a sua última lembrança, da pessoa que mais amava.
— Preciso vê-la! — Camila disse se aproximando da criatura, mas ela se afastou.
— Você não pode. Está morta, não pertence mais a esse mundo.
Camila olhou para o lado e viu algo assustadoramente inacreditável. Deitado em uma mesa de necrotério, estava seu próprio corpo sem vida. Aquela era a maior prova de que o que ouvia daquele ser estranho era verdade. Ela estava morta, ela que gritava não ter medo da morte, mas no momento que iria receber o seu be o eterno, o negou até o último segundo.

— Preciso achar Amanda. — Nem mesmo a constatação de sua morte foi o sufi- ciente para que esquecesse sua amada Amanda.

Sem ouvir mais nada ou ninguém, Camila saiu “correndo” e atravessou a porta que dividia o necrotério de um corredor. Foi isso que a fez parar; se assustou com o fato de conseguir atravessa algo sólido. Então, fantasmas realmente atravessavam as coisas.

— Normalmente quem morre perde essas lembranças, mas você ainda sabe que um corpo sólido não atravessa matéria.

Camila olhou para a criatura que também havia atravessado e falava tranquilamente.

— Quem é você? — Perguntou.
— Eu sou o que aqueles em vida chamam de “anjo”.
— Anjos não deveriam ter asas? — Ela questionou, curiosa.
— Vejo que suas memórias ainda estão bem vivas.
Camila ficou analisando a criatura, que se afastou um pouco dela para observar o corredor em que nesse momento passava uma outra criatura que parecia coberta por uma nuvem negra — era algo que se assemelhava a um vulto.

— O que é aquilo?! — Ela deu um grito fazendo com que o vulto parasse de andar e virasse em sua direção.

O anjo que estava com ela se colocou a sua frente fazendo com que o vulto parasse e logo em seguida tomasse novamente a direção que estava caminhando.

Camila ficou aliviada, sentia que estava sendo transportada para um filme de terror. Desejava com todas as suas forças que aquilo fosse um pesadelo e pedia para acordar a cada segundo que passava.

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24 set

Melinda – Keller Coraggio

Uma e cinquenta e quatro da manhã senti a presença dela chegando leve como uma brisa.

Melinda, é você? Perguntei ainda no escuro. Ela me disse com sua voz doce e terna, sim, sou eu, esta pronta?

Meu coração acelerado, minha respiração ofegante denunciavam a minha grande ansiedade para dar inicio a minha viagem.

Melinda disse, coloque suas mãos pra cima, pois agora vamos voltar no dia em que você conheceu a Amy. Meu coração batia ainda mais forte; teria eu encontrado o caminho para fazer tudo diferente? Teria eu a chance de chegar em um lugar que nunca estive? Teria eu como mudar o passado?

Fazia frio aquela noite, 23 de agosto de 2008. Acabara de sair do trabalho e resolvi alugar umas tas de vídeos;; chuviscava, e eu estava sem guarda chuva, entrei segurando minha bolsa, tentando secar o braços e cabelos.

Logo estava em frente a sessão de filmes que mais gosto, comédias românticas. Perguntei sobre lançamentos e se havia um em especial, o atendente não me ouviu e quem me respondeu foi ela. Olhei três vezes para ver se entendi o que via – uma garota de calças largas, cabelos arrepiados, que quando sorria fechava um pouco os olhos. Respondi imbecilmente com apenas um Oi, e ela tornou a repetir; o filme que quer esta comigo. Parecia que um meteoro tinha caído sobre minha cabeça, meus olhos enxergaram tudo mais claro; acendeu-se um sol na minha frente, meu estomago parecia borbulhar, como a tal história das borboletas.

Aproximou-se e disse: “Prazer, Amy”, e eu totalmente sem reação disse, “certo, sou Eduarda, mas pode me chamar de Duda”. Tive as reações mais idiotas possíveis.

Depois de muito escolher o que gostaria de ver, que foi absolutamente nada, me despedi de Amy, pensando em quando a veria novamente. Então ela saiu correndo com a fita na mão, que o atendente rapidamente lhe entregou, e, parando na minha frente disse, que tal uma carona e um café?

E, nesse momento, Melinda sorria junto comigo ao me fazer lembrar, continue, ela disse.

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21 set

Fantasmas do Passado – Raquel Amorim

Jack sempre foi um menino sorridente e até mesmo bastante inteligente para as condições que a vida lhe impôs para sobreviver. Nunca é fácil estar feliz, pensar positivo, imaginar que pode car bem estando preso a uma cadeira de rodas, mais ainda, sem poder expor em palavras o que sente ou quer.

Suas mães ficaram radiantes com a sua chegada, mesmo depois que foi diagnosticado com paralisia cerebral severa. Seus ossos atrofiados e a incapacidade de fala não foram su cientes para elas desistiram da maternidade. Maísa, a gestante, se deliciava toda vez que sua esposa beijava  a barriga, prometia amar os dois para sempre; e ela vinha cumprindo isso com maior prazer.

Cuidar de Jack, ainda que cansativo às vezes, é satisfatório, pois toda vez que o menino sorri elas sentem que parte das suas missões em vida está sendo cumprida. Para Maísa e Clarisse é bem isso, elas vieram a esse mundo para dar amor e felicidade a aquela criança.

Quando Jack fez dez anos, mais especificamente cinco dias depois, o avô dele, pai de Clarisse, faleceu. Ela era lha única e por isso teve que ir até a pequena cidade onde o pai morava, ainda mais porque havia casas e terras para serem cuidadas.

Diante dessa nova realidade, as duas mulheres tomaram a decisão — iriam se mudar para o interior da Bahia, viver na pequena cidade de Andorinhas, localizada no Centro Norte do Estado. Um mês depois, os três saíram da grande São Paulo a caminho da cidade natal de Clarisse, onde a mulher de trinta e oito anos viveu sua infância e adolescência.

Ela conheceu Maísa na cidade grande, começaram a namorar, casaram e tiveram Jack. Maísa é mais velha, tem quarenta e um anos, sempre teve vontade de ser mãe, e agora tem planos de adotarem uma menina, o sonho de Clarisse, mesmo amando seu filho incondicionalmente. A mais nova é fisioterapeuta e a outra é fotógrafa, profissão que acabou deixando um pouco de lado para que pudesse se dedicar aos cuidados intensivos que o menino necessita.

A nova casa era grande, pelo menos para os padrões do interior. As terras eram maiores ainda, sabendo lidar com elas poderiam viver ali muito bem. Havia gado, não em grande quantidade, mas o suficiente para ter sustento, galinhas, porcos, cabras e grandes árvores com variadas frutas.

A vida dos três caminhava para uma felicidade extrema, tanta que quase não poderiam descrever; até o pedido de adoção seria feito na cidade. Tudo ia perfeitamente bem, pelo menos até dois dias atrás, quando coisas estranhas começaram a acontecer.

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08 set

Caleidoscópio – Marina Porteclis

Por vezes, há cores em nós que não vemos

Por vezes, há cores em nós que não vêem

 O brilho que escondemos ou que se esconde

A vida que pulsa e pede para ser liberta, mesmo quando não sabemos de onde

Tudo isso pode aparecer

Quando nos permitimos ser o que, de fato, somos

 A idade nem sempre está nas rugas

Nos cabelos brancos

No tempo

Está na falta de aceitação do momento

Ou na própria juventude que se desperdiça

 A idade nem sempre está na vida

Mas no caleidoscópio de cores

Que gira enquanto nos escondemos

Às vezes por entre sombras

Às vezes por entre flores

 Aceitar-se é a única forma de deixar nossas cores verdadeiras virem à tona

 Enquanto lutamos contra nós mesmos

Estamos fadados ao fracasso

 Apenas quando nos encontramos num sincero abraço

E nos permitimos ser, seja o que for

Podemos oferecer laços verdadeiros

E a cor mais preciosa de todas:

o amor.

01 set

Eu luto – Marina Porteclis

Nos olhos negros, dias cor de chumbo, escudos

Sucumbir às molduras, podar a própria alma para caber nos Esquadros, desnaturar-se

Tudo isso tem um preço ainda mais alto

Em Casa Forte, bairro rico e glamouroso

Longe de ser única

Era apenas mais uma num exército de iguais

Não por vestir as mesmas roupas de marca de seus pares,

Nos olhos azuis, o brilho turvado pelo cansaço

Quebrar molduras, romper Esquadros, libertar-se

Tudo isso tem um alto custo

Em Casa Amarela, bairro pobre e populoso

Era única

Não pela compleição de estrangeira,

Tampouco pelo porte altivo e másculo,

Mas pela bandeira lá no alto hasteada:

tampouco por dirigir a Range Rover protegida pelos óculos Prada,

Mas pela bandeira a meio-mastro hasteada:

“Eu FUJO”.

Poema feito para o livro Esquadros

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