04 out

A Vida Dura — Marina Porteclis

E a vida dura
Mesmo quando se perde a chave do carro,
Mesmo quando se chega atrasado,
Mesmo quando se anda estressado,
Com o preço do combustível,
Com o cheiro dos esgotos,
Com o vazio que corroí a alma,
Com a inquietude que dissipa a calma,
Com a angústia que fere, mas não mata

E a vida dura
Mesmo quando não se tem fome,
Mesmo quando não se tem cura,
Mesmo quando se esquece o nome,
Daquilo que se sente quando se perde o que não se tem
Ou se acha o que não procura

E a vida dura
No silêncio das palavras,
No barulho das ausências,
Nas varandas, nas janelas, nas sacadas
De onde a vista é encurtada
E não se põe horizonte
Nem se semeia violetas, rosas ou verbenas

E a vida dura
Mesmo quando já não há espanto,
Mesmo quando já não há encanto,
Mesmo quando se preserva o que não mais dura

E a vida dura
Mesmo quando tão pungente
Mesmo quando de repente
Deixa de valer a pena
E o poeta diz que vale
Se a alma não é pequena
E a vida dura mesmo quando se mente

E a vida dura
Com ou sem o pão nosso de cada dia
Com ou sem o pai nosso de cada dia
Sempre há alimento
Viva-se de mentiras ou de verdades,
Viva-se de aleluias ou lamentos

E a vida dura
E, sem poesia ou piedade, nos segura
Pelos últimos fios,
Pelas últimas seivas,
Pelas últimas crenças,
Até que, cansada, nos liberta,
E, traiçoeira, nos arremessa
Para a morte de mais um corpo
Enquanto se cava mais um fosso
Em meio à terra plana e adubada de sonhos

Mas nem aí jaz nosso último embate
Pois mesmo quando se morre
A vida dura
E é dura também na imortalidade.

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